quarta-feira, 10 de junho de 2015

Luicito

     Este conto foi publicado a mais de um ano e agora está aqui, homenagem a Luiz Netto Espinosa - meu pai


      O cabelo todo branco e o cinza dos olhos quietos diante da televisão. Em contraste a boca inquieta, falante, reclamando de tudo. Xingando os jogadores, narrador e a quem mais aparecesse. Era difícil imaginar o que acontecia nos recônditos da mente do velho Luicito.
        Era quase impossível saber se ele lembrava do pequeno luicitinho de calças curtas e alpargatas que empurrava o carrinho de carvão nos trilhos da antiga companhia de mineração. Lá ele não via muito adiante, sonhava, mas apenas com coisas pequenas, a pelada no fim da tarde, ou então, a tentativa de furar a fila da matiné do cinema no domingo.
        As outras coisas só viemos saber mais tarde, no andar da vida e no travar da lida. Um pedaço cá, um outro adiante e fomos tendo a ideia do que havia sido a vida do Luicito. Era assim que a velha vó Luzia costuma chamar, no seu espanhol errado o pequeno Luiz.
        Jogava muito o guri e crescia jogando cada vez mais. A bola amiga ele dominava e a lançava forte, precisa, derrubando o goleiro ou furando a rede. Cresceu e aprendeu outras coisas e teve que trabalhar para a família sustentar.
        O torneiro mecânico ganhou regalias. Entre elas uma bicicleta que existe até hoje na garagem do velho, na qual guarda tudo junto com as lembranças dos dias de glória do ‘pelé branco’. Sempre escalado fosse no Brasil ou no Butiá F.C. jogou em outras cidades e sempre, após cada jogo lá ia ele ver a mãezinha. Um taxi a disposição para levá-lo. Tudo custeado pelo clube ou pela companhia.
        Claro que era diferente antigamente, trabalhando a semana toda e jogando no fim de semana. Na frente da televisão ele esbraveja e xinga o jogador que ganha mas de cem mil por mês e nem tem que trabalhar. O velho aposentado reclama e fala para si mesmo, com orgulho, cada jogo com seus macetes para bater um pênalti ou fazer um belo gol do meio do campo. Com certeza, porém, aquele contrato com o Internacional de Porto Alegre foi o grande momento, a grande decisão.
        Lá foi jogar na capital e a velha mãe a chorar pelo luicitinho que foi prá longe, como se nunca mais voltasse. Um ônibus até São Jeronimo, depois o antigo vapor até Porto Alegre pelo Rio Jacuí. É agora o homem era o maior, arrasou no treino e o contrato assinou. Satisfeito e cheio de sonhos foi a terrinha contar à velha mãe o grande feito, achando que assim ela parava de chorar.
        Chegou com ares de celebridade, muito bem recebido, cheio de novidades. Então por que não um joguinho de fim de semana, uma pelada com a gurizada. Um junta junta só prá brincar um pouquinho. Todos queriam vê-lo jogar, gritando seu apelido, cheios de admiração. Começa o jogo, seus olhos brilham e ele mostra do que era capaz.
        Luicito, o melhor jogador da cidade,chegava junto numa dividida espetacular. A dor foi forte, dava quase prá chorar. Lá estava o Luicito com o pé quebrado e como profissional não voltava mais a jogar. E ao que parecia as rezas da espanhola deram certo, de uma maneira trágica fazendo ele ficar junto da mãe protetora e carente.
        O velho suspira na frente da televisão olha pro controle remoto e diz prá ele mesmo:

        - Que bom não precisar levantar prá trocar de canal!

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